quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Página em Branco

Desde criança, Ariela costumava escrever. Escrevia de tudo: cartas para amigas, diário, poesias, redações. Era como se houvesse uma linha direta entre seu cérebro – mas principalmente seu coração – e sua mão direita. E ainda assim ela tinha a sensação que ia deixando fragmentos de idéias e sentimentos no meio do caminho que ligava estes dois pontos do seu corpo.
Seus textos costumavam ser autobiográficos, ou, mais ainda, textos de desabafo, quase terapêuticos. Sempre foi mais fácil para ela escrever do que falar.
Na época em que precisava decidir o que ia ser quando crescesse, ela não tinha a menor idéia – como a maioria nesta idade. Chegou a prestar vestibular para Letras, mas no momento da decisão mesmo, foi tomada por uma “onda de realidade” onde as pessoas à sua volta perguntavam o que iria fazer com um diploma de Letras, como iria ganhar dinheiro. Foi então cursar Engenharia.
E foi assim que Ariela começou a se afastar da escrita, pelo menos do modo como estava acostumada. À medida que seu cérebro ia sendo formatado a pensar de forma lógica, racional e analítica, sua sensibilidade para textos que não fossem técnicos foi sendo reduzida. Seu caderno de poesia e seus textos sumiram nas mudanças da vida e nas mudanças de casa.
Reforçada por uma carreira executiva promissora, seus escritos tomaram o formato de uma apresentação de Power Point, em bullet points, à exceção de algumas cartas de amor, que também se tornaram cada vez mais raras e mais curtas (não por falta de amores, ainda bem!).
Com isso, a vida tornou-se mais opaca – impressionante como para ela as palavras tinham o dom de iluminar a realidade, fosse ela boa ou ruim, tornando as cores mais fortes e os sentimentos mais acentuados.
Começou a buscar textos de outros autores toda vez que precisava ilustrar um momento importante. Com o advento da Internet, isto se tornou mais fácil do que o envolvimento emocional de escolher as suas próprias palavras.
Não foi de todo ruim. Conheceu textos incríveis e percebeu que das duas, uma: ou um mesmo texto pode refletir vários sentimentos diferentes; ou todo mundo sente mais ou menos as mesmas coisas. Provavelmente ambos.
Ariela casou-se, teve um filho, separou-se, casou de novo. Trabalhou muito, sofreu e foi feliz sem perceber.
Só voltou a escrever quando virou avó. Diz que sua neta “destravou” a sua mão direita (na verdade agora escreve com ambas as mãos, teclando). Escreveu então a sua história, e a importância das pessoas que passaram pela sua vida era medida pelo número de páginas que ocupavam.
O texto ficou lá, guardado no disco rígido do seu computador, sem sequer uma cópia de segurança. Nunca imprimiu ou enviou para ninguém, já que ficou feliz só em escrever.
Um dia o disco rígido quebrou, ou algo parecido. Ariela perdeu todos os arquivos. E, aos 78 anos, se viu diante de uma página em branco, como se pudesse (e podia!) reescrever sua vida.
“Acho que os melhores momentos da minha vida ainda estão por vir”, começou ela. Não é fantástico o poder da escrita?
Gisela

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